quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Estudo do corpo número 2

"Está desaparecida". Era assim que o jornal do dia comentava minha cara ao descobrir que não havia leitor a segurá-lo frente aos olhos.
Logo em seguida um corpo atravessa a rua há alguns metros de distância de um suposto observador. – Vale notar que este observador anda seguindo este corpo há pelo menos nove meses.
Bem, este corpo que anda a frente desta testemunha oculta é falso, falsifica a identidade humana, posto que da espécie só tem a forma. - Não deixamos de apontar que a cópia é magnífica, perfeita; todos podem acreditar que há alguém ali, mas não. Somente o observador indicado acima sabe que aquela matéria é fantasma.
O observador está ávido por relatar ao mundo a descoberta de um corpo fantasma. Ele quer dizer: Isso não é verdade! Caminha, carrega objetos, lança sorrisos, mas está morto: este corpo só move!
O corpo não quer ser desmascarado, pois isso o obrigaria a morrer de fato. Sendo assim, ele respira, lança sorrisos, trabalha, e em alguns dias empresta sua energia para eu vir chorar.

sábado, 19 de setembro de 2009

Estudo do Corpo número 1

Sinto falta de um amigo. Um amigo sem interesse, para brincar.
Sinto falta de mim; daquela garota que tinha uma história viva

(O que era falar com ela todos os fins de semana?)

Havia realidade - eu era real.
Os outros eram o mundo, eram paisagem, o cenário onde nossa brincadeira acontecia. Somente nós éramos reais.

Quantos enterros meus fiz!
Sepultei-me várias vezes,
e ainda não estou lá onde me deixei.

Vago.
O que sobrou de mim? Pele, carne, ossos,
pedaços organizados em forma de corpo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Corpo ali

Pedaço de algo abrunhado junto a outros objetos depositados num espaço quadrado a que chamamos casa. Sou eu. Pedaço mole, de cor amarelada, movente. O tempo vai esticando tudo; meus braços cada vez mais largados, minhas pernas mais desordenadas, minha cabeça, uma esfera atônita pendendo sobre ossos. Um amontoado, uma massa, um ajuntado de pedaços moles a ficar.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O vento

O vento passa e vai levando tudo que até hoje chamei eu.
Não sabia que era feita de cores fortes, móveis, cachorro, sorrisos dos outros - tão queridos! -, de uma pele cheia de manchas, pintas e cravos - que ela costumava chamar de couro de porco - mas sem rugas (sorrio quando lembro).
Não sabia que era feita de uma idéia de mim mesma que só tinha sentido quando tudo estava em seu lugar.
A voz dela, a casa dela, a música do seu violino e da sua flauta...O vento está levando tudo e eu me desfazendo como estátua de areia.
Ainda tento respirar, mas o ar está vazio.

Nunca foi tão nítido o tempo, o desgaste, o verbo ir, o nada, o não.

terça-feira, 2 de junho de 2009

"O sertão é dentro da gente"

As vezes não precisamos dizer nada porque alguém antes de nós já achou todas as palavras.
"Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muitos vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como o sofrimento dos homens."
(Guimarães Rosa)

domingo, 19 de abril de 2009

Para entristecer uma mulher

Diga eu te amo a ela quando estiver bêbado, depois vá para cama com ela, faça sexo e durma. No dia seguinte deixa-a acordar primeiro que você e ver-lhe estirado na cama, melado de suor e cheirando a cortiça; mantenha-se roncando, de prefência. Quando você acordar, olhe para ela com aquela cara que diz: o que você está fazendo aqui? Mas não se esqueça de parecer educado e ofereça-lhe um beijnho.
Talvez ela não diga nada, talvez ela só pensará o quanto é sozinha, o quanto alguns de seus orifícios são úteis durante a noite para o “homem que a ama”, o quanto seu amor-compaixão tem sido maior que seu amor-alegria, o quanto mais ela consegue fazer isso – por amor. Somente pensará, então, olhando para você e para ela mesma, vendo sua pele suja de esperma.
E saibam, antes de tudo, que é assim que são feitos muitos filhos pelo mundo.

quarta-feira, 4 de março de 2009

O Casamento

Eu estou com um vestido preto, curto, muito sensual; e salto alto. A outra mulher – que não parece convidada – está vestida casualmente. É uma senhora de meia-idade, um pouco gorda, branca, de aspecto triste e inseguro.
Ela e eu sentamos no fundo da igreja – ela uns três bancos à minha frente, deslocada um pouco para esquerda. O casamento ainda não começou e ela já está aflita. Entre nós há um inseto, que acabou de cair do ar e se debate com as perninhas viradas para cima. Ele grita em silêncio enquanto nós esperamos a noiva.
As portas se abrem, começa a música, nós nos levantamos, os padrinhos iniciam sua entrada. A senhora triste está tímida agora, tentando controlar sua melancolia crônica e o nervosismo que esta ocasião lhe provoca. O inseto continua ali, sabendo que morrerá em pouco tempo – ao som de um réquiem – e eu estou fingindo que não vejo tudo isso com os olhos virados para o corredor central.