sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Por que não falar do sol? - A Divina Comédia

Desde aquele dia na pequena igreja do bairro quando aquele cachaceiro de braços finos e duros a ergueu tomando-lhe de súbito as axilas e rindo que ela soube: jamais teria sucesso na vida. E assim foi, a menina cresceu, esqueceu-se daquele episódio mas nenhuma sorte daquelas graúdas, que mudam a direção da sua vida para melhor, que lhe colocam em um novo mundo colorido e agradável tinha lhe acontecido. Ela sabia que esse tipo de sorte não era com ela, só as triviais: ganhar um convite para o cinema, uma bolsa na promoção do supermercado, aquele táxi que passou na hora certa quando estava atrasada, conseguir encontrar um banheiro a tempo quando não podia mais segurar; e também aquelas sortes estáticas que muitos chamam de anjo da guarda e impedem que coisas más ou trágicas lhe aconteçam, como quebrar um membro, sofrer acidentes, violências, abandonos; mas a grande sorte, a sena, o príncipe encantado, o olho de um caçador de talentos, jamais; não era para ela.
O destino nos é revelado nos detalhes, a menina sabia disso. Não queria pensar porque o tema parecia pouco consistente e ela era do tipo que acreditava no poder intrínseco do indivíduo, na força da própria opinião. Apesar de fugir dos livros de auto-ajuda, não tinha dúvidas de que o destino era uma estrada construída pela confiança, suor e o talho preciso de um caráter virtuoso. Tristes ilusões americanas que nunca encontravam espelho em sua realidade, ao contrário, era sempre o bêbado, o canastrão, o sátiro, que estavam por perto para zombar de suas convicções. Aquele riso sem contexto e eufórico que celebrou a menina no espaço santo era só o que o mundo lhe reservara. Salvo algumas penas, pois afinal o gato gosta de brincar muito com o rato antes de liquidá-lo, o destino da menina era o desejo empobrecido de homens carentes e frágeis. Ela tinha medo – ela sempre teve medo – porque não queria lutar, não veio para isso, mas a vida a impelia. Lutar para sofrer menos e não para ser feliz.
Um dia a menina viu Deus, Ele lhe pediu paciência e compaixão; ela pediu descanso; Ele não respondeu. Ela aceitou, mas não sem fazer aquela cara de resignação de quem quer deixar claro que não está feliz. Respirou e continuou. Não entendia porque Deus não sentia culpa pela sua infelicidade, e de outros, afinal ela sabia que não era a única a ter sido batizada por Suas mãos irônicas.
A bronquite na infância não fora por acaso, a pneumonia, precisava ter os pulmões fortalecidos pois iria suspirar muito. Os desejos lhe exauriam, qualquer hora ela sairia atirando, fazendo justiça – paciência demais desgasta. Ele a perdoaria: entende o que são urticárias, entende o cansaço, a escassez de saliva.
Hoje tenta fazer como Ele: ri, ignora, diverte-se sozinha, ama quando vê criança e lamenta.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Eu: mulher, carente, desterrada.

Vou dizer a ele que estou doente, que deixei a lógica e o discernimento de lado e agora estou na cama esperando a sopa. Mas sei que ninguém virá com o prato de jantar. - Eu e Nijinski escrevemos muito sobre nossos estômagos.
Não me importa o sentido das coisas, este artigo é na desordem do meu pensamento sem juíz, é quando toco meus sonhos sem precisar adormecer.
Direi que não quero mais sexo casual, quero romance. Cansei da pobreza de nossa relação. Quero vida, intensidade, motivação. Quem é que tem motivação hoje em dia? Acho que existem obsessões mais do que motivos.
Vou embora. Mais uma cidade arruinada, esgotada. Hora de esgotar outra. Canso-me dos lugares quando ali não encontro mais nada que aqueça meu corpo, que me dê energia. As árvores estão velhas, o mar, coisa dos burgueses e o resto é precariedade. Não gosto de inventar objetivos, pois acho que os objetivos são necessidades que nascem por si mesmas; se não nascem há algo errado. - Pelo menos quando mudo de cidade a necessidade de existir dentro do novo acontece e me estimula à recriação.
Hoje ele não irá me chamar porque sabe que estou menstruada. Ele quer sexo, eu quero romance.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Pensamentos e sons noturnos

Sei que um dia vou cometer o suicídio. Sinto minhas vísceras cansadas, velhas; elas me trairão cedo ou tarde, mas não será por vingança, será por tristeza. Minhas vísceras são sem esperança; são fortes e disseram que lutariam até o fim mas estão chorando.
Tenho pena do homem que tosse toda a madrugada, o silêncio e sua tosse são a madrugada. A tosse me desespera, que corpo pode suportar tamanha trepidação por horas? Um dia a casa cai. As convulsões são carrascos que açoitam sem pausa, lançam-lhe por toda a sala. Quantos vulcões ainda explodirão desejando me rasgar, me expulsar de mim, quantos eus me odeiam e querem a independência? Sei que um dia me trairei. Eu não sou um reino em paz. Um dia minha pele se abrirá e meus organismos fugirão para a terra, todos eles – toda vida deseja renascer diferente, toda vida deseja novas alianças, novas… –, e eu ficarei oca, sozinha, perdendo, perdendo, perdendo. – Acho que rirei.
Não terei filhos, não ei de salvar-me em outra união, rirei.
O filho é a fuga, a estratégia de salvaguarda dos tesouros, a tradição. Não fugirei, deixarei que tomem tudo o que desejarem, rirei. Quero rir dos açoites, quero que meu organismo não vença, que perca o sentido. Quero que a guerra seja inútil. Pena de mim? Sim.
Procuro uma maneira de entrar sem ver sangue, não gosto de sangue, ele me desespera. Entrar saltando ou entrar dormindo? Hoje eu acordei, não esperava. Eu sempre me surpreendo com minhas vísceras que ainda funcionam; como conseguem? Mas eu disse: elas me trairão, e irão fazer quando eu não quiser porque querem meu sofrimento.
Por que ela me pedia ajuda? Por que ela perguntava o que estava acontecendo? Ela se desesperara. Sofria, sofria muito; como se se afogasse por dias. Torturaram-na. Nunca vi tanta crueldade, dos homens e dos deuses. A vida é má. E eu só tinha amor.
Um dia sei que vou cometer o suicídio. Não me desesperarei, não perguntarei o que está acontecendo, não pedirei ajuda. Rirei e a guerra será inútil.