segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

AMOR DE ILHA

 

Sonhei que meu amor de ilha
me cobria toda com um beijo mar.
Ele era doce, não salgado, e me derretia
nas suas mãos, esquentava.
O calor suava, fazia o ar girar
e meu corpo em redemoinho
convulsionava o oceano do seu desejo.
Água, enfim!
Dois corpos (rios) entrelaçados 
sob o orvalho da pele de uma manhã.   

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Pecado original

Não se preocupem, nós sempre seremos as culpadas.
Eu fui culpada pela doença de minha mãe.
Ela foi culpada por ficar doente.
Foi culpada por não conseguir se curar de um câncer maligno.
Por não conseguir voltar para casa e facilitar a vida do filho.
Ela perdeu os movimentos do corpo mas se esforçou
a ponto de quase morrer engasgada para engolir umas colheradas de sopa quando foi ele que a alimentou.
Eu fui culpada por não passar a mão na cabeça do único irmão,
de coração peludo me chamaram.
Já devia estar acostumada,
aproveitar a condenação mas não,
a gente ainda sofre e acredita na acusação.

Um dia decidi que não teria filhos para poder morrer em paz,
Quanta ilusão! Sou mulher e a culpa é minha!
Fui eu quem comeu da maçã!

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Gravidade

Entre a autocompaixão e o flagelo

Noventa graus

Não existe ponto de equilíbrio no cair

marcado pelo vértice,

meu corpo pêndulo

tomba e derrama água

salgada com sangue.


Vai, balança! 

Deixa pesar na volta.

Vai, esfola! 

Deixa rasgar a pele.

Vai, levanta! 

Desapareça. 

domingo, 11 de julho de 2021

Cartum

 

Os olhos não estavam em lugar nenhum

Das narinas, o ar

Saiu curto e apressado.

Entregou a raiva com um beijo.

Foi para mim

mas não era por mim.

Ele não gostava de gostar.

 

As ruas continuaram secas

Os pássaros tristes

Naquele inverno

Nem um pouco de chuva caiu

Para lamentar a miséria

Daquele sorriso em pedaços 

De papelão.


quinta-feira, 24 de junho de 2021

"Despejo na Favela"

 

De volta ao quarto, a recomendação do médico foi para que a cercássemos das coisas de que gostava. Assim, vários CDs, das músicas que costumava ouvir em casa, foram levados para o hospital.

Chopin e Bach eram os que eu mais colocava pois ela gostava muito de música erudita, mas um do Edson Cordeiro, com canções variadas, também se fez muito presente naqueles dias. Deste álbum, sabia que as preferidas eram  Ombra Mai Fu - Lascia ch'Io Pianga (Handel) e Ave Maria (Vicente Paiva e Jaime Redondo), mas como eu geralmente deixava os CDs rodarem inteiros,  o samba Despejo na Favela ganhou um sentido único, tornando-se uma espécie de oração de despedida para mim.

O samba de Adoniran na versão de Edson Cordeiro é acompanhado por um tambor que lembra uma batida lenta de coração ou um cortejo fúnebre. Já o verso “é uma ordem superior” não me deixava esquecer que nada podíamos contra sua doença:  

É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior”

Meu mundo estava desmoronando e a música dizia: “Dentro de dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão”. Era mesmo isso: estávamos fora de casa, em uma cidade que não era referência para nós, vivendo em um hospital situado à Av. da Saudade e talvez não tivéssemos ali, juntas, mais do que dez dias restantes.

A canção continuava e agora tentava tranquilizá-la de que eu sobreviveria:

“Pra mim não tem problema
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito me ajeito

Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás”

 Eu sobreviveria porque não havia outro destino. Quando tudo aquilo tivesse terminado minha vida não faria mais diferença. 

A canção, então, chegava em sua última estrofe, nós nos entreolhávamos – ou não – e o pesar já não era por mim mas pelos seus irmãos, aos quais ela sempre deu a maior assistência; e pelo seu primeiro filho, pois ela acreditava que ele não era feliz.

“Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Mas essa gente aí, hein?
Com'é que faz?”

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Poema para a covardia dos tempos

Só sei que quando é para
Ser do jeito que a gente quer
A gente faz dar certo
Nem que o certo seja errado.
Faz dois mais dois virar cinco
Faz mosquito virar brinco
Faz besteira parecer inteligência
Torna caixa de marimbondo, chapéu.

Só sei que se for para
Ser do jeito que a gente quer
Até mais burro a gente fica
Tapa o sol com a peneira,
Coloca a viseira
Grita para não ouvir!

Do jeito
Do jeitinho que a gente quer
Acreditar (para não morrer de medo)
A gente vai
Plantando pedra
Dando cabo da felicidade.

domingo, 11 de março de 2018


Sou uma fêmea
Fêmeas não têm direitos
Fêmeas não são gente
Fêmeas são máquinas da natureza
Cativas da vida, cativas de homens, cativas de crias, cativas de família, cativas do sistema.
Produtoras de carne, produtoras de sangue, produtoras de alimento e força de trabalho
Reprodutoras
Vacas, porcas, cadelas...
Só as putas são mulheres,
Só as bruxas são humanas.    
E só as filhas de uma puta mostram os dentes pela própria liberdade.