quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Boto

Hoje tinha um boto rosa flutuando sobre a mesa do almoço.
Ele fora adquirido no cemitério, no dia de finados, para alegrar nossa feijoada.
Voava, iluminando a todos com sua pele que brilhava ao encontrar filetes de sol.
O boto, depois da exemplar participação no almoço, voltou para casa de carro, preso na coleira para não sair pela janela. Medida esta necessária, para evitar que ele subisse de encontro a lua e nós, pobres, sentíssemos mais um adeus.

Vida em Borrões

Minha cabeça pouco pensa, é verdade. Minhas mãos pouco fazem. Tantos possíveis começos. Tanto mundo surrado, modernamente vulgar, tecnologicamente velho.

As vezes bom mesmo são as velhas tias que se dedicam a cuidar da arrumação da casa e do preparo da boa comida. Mãos habilidosas no artesanato útil da costura e da cozinha. Tem coisa mais digna no mundo que confortar e alimentar o outro? Tem coisa mais necessária? Acho que não.

Eu: ávida por novidades ultrapassadas, sofro do tédio de não poder fugir do óbvio. Assusta-me o ciclo da vida em cumprimento. Faço parte disso? Por que me desanimo tão rápido de tudo? Nasci torta.

O que é interessante?
Interessante para mim é tudo aquilo que parece conter uma veracidade divina.
Gosto daquilo que fala comigo como se fosse Deus.
Não sei o que é Deus, mas eu sou tão sozinha, estranho tanto o mundo humano, que só com um Deus por perto eu me sinto protegida da esquisitice deste mundo. Preciso que alguém me compreenda, nem que seja uma árvore, uma pedra ou uma nuvem. Sou mais irmã da luz crepuscular, da brisa noturna, do céu violeta das tempestades de verão do que da minha sociedade.

Não sei mais como fugir. Sinto que estou no lugar errado e tenho que esperar.

Gosto de literatura...Busco respostas. Busco, na verdade, portas. Tudo que quero é a saída desta incongruência.
Para fora ou para dentro, portas de um outro mundo, com matéria, substância manipulável.

Quero manipular massas palavras, massas fatos, massas processos, massas comida.

Meu mundo é inconsistente, feito de poeira lã e farelo de ossos em ventania: tudo de minha memória se esfria e emagrece de sentido; amiúda como eu não queria.

Se não é agora em mim, nunca será. Passa como se nunca tivesse sido.

Não sei o que fica. Eu queria massa.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Todas as paredes tinham que ter seus ninhos...
Para que em dia escuro,
Sob nuvens de chumbo,
a gente pudesse se esconder do sol que impinge nossa sina:

Dói,
mas o que?
Escorre,
mas para onde?
Quebra,
e não vejo os cacos...

Preciso pertencer a vidas velhas.
Preciso.
Preciso de tecidos mortuários
contornando minha pele
Flores duras
Que do meu corpo saia o líquido
Que os ossos se depositem silenciosos e obedientes
(restritos)
sobre um chão escuro e tardio.

...

Olhos de folia, não por cima de mim!
Bocas de desejo
rasgadas em sorriso,
para fora das minhas lágrimas
Cães de marfim,
tenham piedade.
Hoje sou só um ser descarnado e cego
Gritando na mudez de entranhas tristes

Esqueçam-se de mim, mas esqueçam com compaixão.
Lembrem-se de mim, mas lembrem-se quando houver mar e ventania.
Amem-me, mas como quem ama a fatalidade da folha desgarrada do galho,
aquilo que não pode ser mudado,
os cabelos da medusa,
os encantos do destino,
os feitiços naturais.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Ismael

Muito prazer, meu nome é Ismael...e eu não sei o que quero.

Isso deve ter acontecido aos poucos, pude perceber a mudança..., mas custei a aceitar o que ela anunciava.
Uma pessoa de quem eu gostava morreu, outra a substituiu – mas por quem não tenho tanto apreço.
Esta tem necessidades comuns, é capaz de sobreviver em grandes cidades, olha assustada para os conhecidos, acha que tudo está diferente e pior: sua história é mais longa, seu desconforto mais grave, seu não pertencimento: a todos os lugares; sua memória, cruel, seus passos, vingativos. O mundo a comeu, não a matou.
Esta outra pessoa que assumiu o lugar da morta por enquanto pensa que não tem sentido a vontade porque toda vontade leva à premeditação de uma morte, e que o verdadeiro desejo é o resgate da vida que se perdeu: quanto mais se deseja mais o verdadeiro desejo é fortalecido, o inatingível, aquele impossível de alcançar com vontade.
Eu, Ismael, sou um desconhecido. Passo os dias sentado, sozinho, numa sala vazia. Ninguém sabe da minha existência por isso não recebo visitas. Minha atividade é saber do que se passa – e eu sei. Tenho opiniões, mas elas são inúteis.
O meu papel? Viver alocado nas almas de pobres jovens em gestação a testemunhar seu envelhecimento. Em geral, não gosto de presenciar esta ocorrência inevitável, mas não tenho escolha, sou como uma lagarta de fruta podre: só posso existir neste mundo.
Cada um envelhece de uma forma. Já vi casos onde aconteceu no susto: de repente a menina lembrou de seus setenta anos e sentiu-se cansada pelo tempo que ainda teria que viver. Seu coração afrouxou diante de sua imagem gasta. Outras vezes, é pelos filhos, quando o futuro é transferido para eles. É a morte anunciada pelo nascimento. – São os casos que me dão mais sono e, infelizmente, os mais comuns.
Há ainda os que envelhecem nas pancadas, aqueles que já nascem velhos porque têm o destino traçado, os que pegam poeira porque se perderam no caminho, aqueles que vão lentamente, deixando o corpo velho aparecer e a sociedade cumprir sua coerção; e, por último, aqueles de que gosto: os que não envelhecem mas metamorfoseiam-se.
Estes são os melhores porque surpreendem. – Até me levanto da cadeira para falar deles. São divertidos e inesperados. Mesmo que o tempo aja, lá estão os sapinhos alados, como costumo chamar, a inventar um novo corpo, uma nova vida; histórias e alegria. Não existe o processo para eles, a evolução: tudo é criação no agora. Simplesmente vivos como insetos que não sentem o fim.
Atualmente, habito num tipo que envelhece nas pancadas. – Este também é interessante porque depende das tragédias – e não há monotonia no trágico.
O tipo boxeador, como nomeio o velho por pancadas, costuma fornecer bastante substrato sensorial para a minha sala, pois sua envelhescência vem carregada de incredulidades e conflitos existenciais. Para cada porrada que a vida lhe dá, ele vive um período de desconforto e tensão temporal que me faz passar de jovem a velho em questão de segundos – viajo no tempo com ele. O boxeador envelhece com poucos anos mas com muita memória. Em geral, morre lúcido e sabiamente resignado.

...

Confesso que sou um tanto entediado, mesmo quando envolvido por sapinhos ou boxeadores. Afinal, tudo é o tempo e a minha espera contemplativa. Poderia discorrer ainda – se é que interessa – sobre o tipo de envelhecimento gradual e os empoeirados, mas fica para outro encontro. Agora é a vida que segue.

Detalhes

Quem não tem confiança não se permite.
Quem não topa desafio não conhece.
Quem não aceita a morte não ama a vida.
Quem não encara dor não pode ser feliz.

sábado, 17 de setembro de 2011

Infância

Vivi, Natália, Fernanda, Dudu, Marquim, Tonho, Rafa, Júnior, Marcelo, Matheus, Gabriel, Natalinha, Edinho, Isabela, Adriana, Marina, Tiago, Murilo, Demá, Du Tangerina, Tatiana, Fabíola e Lisa.

Éramos tantas crianças. Todas nascidas entre 78 e 84, muitos irmãos e irmãs, que brincaram e aprontaram muitas na Vila Formosa em São José do Rio Pardo.

Quantas traquitanas, brigas, complôs e parcerias. Ah, se os muros das casas, os telhados, as vielas, as árvores, as pedras da rua tivessem memória!...Ainda veríamos essas crianças a colorir os cantos do bairro.

E minha casa, a casa da Neide (o seu Antônio que ficava puto conosco e saia xingando porta afora com o Tilim de guarda-costas), a casa do tio Rê...? Todas palcos para nossa fértil imaginação.

Vamos brincar de quê? Assim começava a rotina naqueles tempos.

Aí, como havia de ser, crescemos. A Fernanda começou a trabalhar tinha uns treze anos, o Dudu logo cedo mergulhou no stand de tiro e começou a estudar para o vestibular, a Ná começou a namorar o Rodrigo, a Lisa, a dançar e fazer teatro; o Marquim também foi trabalhar, a Vi estudar em Aguaí e todo os outros também tomaram seus rumos. Alguns até já se casaram e produziram novas crianças; a Isabela partiu.

Minha memória adocica quando lembro desta infância,
que ainda vive em mim confundindo os anos:
tudo parece distante como se tivesse sido um sonho, mas não passa de uns quinze anos ali atrás
na curva de um passado recente.
Quem eu fui, quem nós fomos,
quem eram aquelas crianças que um dia foram apenas filhos de brasileiros do interior de São Paulo e viviam felizes sem saber que
o tempo age,
tudo se transforma,
a história se faz
e a lembrança se mistura ao ar como fumaça?

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Estes seres bizarros que pensávamos existir somente nos contos de fadas

Não acreditava em sua existência até topar com uma dupla deste exótico tipo humano. Apesar de muitos livros e relatos de viajantes, ou mesmo transeuntes convencionais, apontarem, com riqueza de detalhes, para a realidade deste ser - e não raro aconselhar que deles existem muitos por aí (portanto vale tomar cuidado) - eu duvidava que tal espécie andasse pelo planeta.

Sempre acreditei que parvalhices podiam ser explicadas através de exames clínicos ou análises psicanalíticas, mas quando finalmente me deparei com a tal espécie, tive a certeza de que não se tratava de problemas hepáticos ou de ordem cármica, mas de uma variação humana com características específicas.
Como se um não fosse suficiente para a constatação, encontrei logo dois do tipo em questão. Os cretinos, afirmo, eles existem.

No início, você tem a impressão de que são pessoas comuns e até bem intencionadas. Mas basta um furo na calça, ou um olhar crítico, para que eles se revelem. Os cretinos geralmente são pessoas com muito medo; eles temem perder o osso - que pode ser por um furo na calça, ou através da sua saliva. O olhar crítico também ameaça, e quando o sentem, costumam esfregar o focinho nas mangas da camisa ou na barra da saia. São roedores de dente alheio portanto tornam-se extremamente agressivos e débeis quando viramos o rosto. Alguns deles, nesta situação, costumam chorar dizendo-se incompreendidos. Lamentam-se de que a humanidade não oferece mais ossos. Intitulam-se vítimas do desrespeito.

Insaciáveis, os cretinos podem ser logo identificados pela forma com que usam a língua. Quando não estão lambendo a si mesmos, estão lambendo outros cretinos. Precisam usar a língua e o sexo todo o tempo. São prisioneiros da promiscuidade e, míopes que são, não conseguem diferenciar amor de sacanagem.

Um cretino típico, quando não está no papel de homem, parece-se com uma hiena ou um cão selvagem. Mas a real imagem desta bizarrice, aparece mesmo quando são tomados pelo despeito e pelo ciúmes: o cretino começa a se coçar e se esfrega em qualquer pedaço de carne, pele ou osso que encontre pelo caminho. Ele ou ela espuma e com um copo na mão ri insano de seu sucesso. Novamente usa a língua, lambe-se ou lambe outro da mesma espécie e marca o chão com urina.

sábado, 3 de setembro de 2011

Poeminhas contra azia e má digestão

Do fel
faço arte
não faço bobagem:
Do lodo nascem flores.

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Uma pedra despenca sobre minha face esmagando-a.
Estou deitada, aprisionada entre a pedra e o chão.
Debato pernas e braços como uma barata.
Consigo mover a boca
e ainda mostrar os dentes.


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O que consola
é que tudo pode ser transformado.
Especialmente em comédia.

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Banana
Bacana
Babaca
Nababa
Cabana
Canaba
Nabaca
Nacana

Da Ana

Qua qua qua!

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Meti-lhe a faca.
Desci rasgando
aquela alvura sólida e burra.

Cacos de tinta
Pele
O reboco sente
Cicatriz

A parede enfeia.


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Amar
Carece-se de saber como.

I love you
ou eu te amo?
Você é algum popstar visitando o Brasil?
(Mas também existem as novelas...)

Tudo é tanto confete e serpentina...






terça-feira, 26 de julho de 2011

Lucy in the sky with diamonds (descontraindo)

Aconteceu numa bela tarde de domingo. O céu começou a quebrar. Primeiro apareceu uma rachadura na altura da Argentina, depois outras fissuras tomaram o firmamento na África e subiram velozmente no sentido do hemisfério norte.
Caiu o primeiro pedaço; era mesmo azul como víamos aqui debaixo , depois outro e mais outro, até o céu desaparecer.
Um buraco negro era o que havia depois do céu, e um vento congelante, soprando cada vez mais forte.
A ventania só aumentava e tudo que estava sobre a Terra agora, como os pedaços de céu, eram arremessados para fora, em direção ao vazio.
Em questão de minutos a crosta terrestre estava limpinha - couro liso como uma careca. E todo o resto flutuava em torno como um grande lixão orbital. - Ou confete cósmico, se preferirem.
Não havia como voltar: estávamos definitivamente vagando no vazio.
De repente alguém gritou: Vamos fazer uma fogueira!
Outro perguntou: Para quê?
- Para acender o baseado, ora essa!

Da pele fina do amor

A parte o músculo, tudo em mim é egoísmo.
O amor passa como sombra. Acontece de repente em situações recortadas a fogo.
É quando quero o sorriso e o brilho nos olhos - inocentes - daqueles moços,
É quando sinto pena das sinas humanas,
Quando cuido do vôo de um inseto calado
ou da timidez de uma árvore pequena.

E entre um quando e outro
sinto desejo de abandonar,
de fugir comigo para largos
onde só eu me ame,
onde a natureza seja minha mãe -e inimiga confessa pois gosto de adversários insuperáveis.
onde o tempo seja aquele da lembrança: saudade.



...



Não brigo por atenção
Não clamo por dedicação
Não dou passo no caminho.
Calculo
Espio
Desligo
Saio de mansinho pela porta dos fundos
Corro o mais rápido possível
Cuido para não ser seguida
Respiro

Àqueles que tem família - e pessoas -
que se ocupem da rotina, do bate-boca,
do vinho e dos pedaços da cidade: barulho
Talheres
Buzinas
Televisão

Não estou.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O caso do ocaso

Sonhei com uma porca gorda e rosa, de focinho marrom; ela tinha os olhos azuis posto que era cega. Uma dançarina que estava no baile me confirmou que o animal não enxergava. O telefone tocou – esses aparelhos nos sequestram da salutar ilusão do sonho e não nos trazem nenhum amor –, era o da dançarina, mas ao abrir os olhos, a pequena máquina estava na minha bolsa. Atendi, esperando ouvir uma voz familiar masculina, era, sim, um homem na linha, porém ninguém conhecido. Pretendia oferecer-me trabalho, declinei. E agora, a porca onde estava?