De volta ao quarto, a recomendação do médico foi para que a
cercássemos das coisas de que gostava. Assim, vários CDs, das músicas que
costumava ouvir em casa, foram levados para o hospital.
Chopin e Bach eram os que eu mais colocava pois ela gostava
muito de música erudita, mas um do Edson Cordeiro, com canções variadas, também
se fez muito presente naqueles dias. Deste álbum, sabia que as
preferidas eram Ombra Mai Fu - Lascia
ch'Io Pianga (Handel) e Ave Maria (Vicente Paiva e Jaime Redondo), mas como eu geralmente
deixava os CDs rodarem inteiros, o samba
Despejo na Favela ganhou um sentido único, tornando-se uma espécie de oração de
despedida para mim.
O samba de Adoniran na versão de Edson Cordeiro é
acompanhado por um tambor que lembra uma batida lenta de coração ou um cortejo
fúnebre. Já o verso “é uma ordem superior” não me deixava esquecer que nada podíamos
contra sua doença:
“É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior”
Meu mundo estava desmoronando e a música dizia: “Dentro de
dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão”. Era mesmo isso: estávamos fora de casa, em uma
cidade que não era referência para nós, vivendo em um hospital situado à Av. da
Saudade e talvez não tivéssemos ali, juntas, mais do que dez dias restantes.
A canção continuava e agora tentava tranquilizá-la
de que eu sobreviveria:
“Pra mim não tem problema
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás”
Eu sobreviveria porque
não havia outro destino. Quando tudo aquilo tivesse terminado minha vida não faria
mais diferença.
A canção, então, chegava em sua última estrofe, nós
nos entreolhávamos – ou não – e o pesar já não era por mim mas pelos seus
irmãos, aos quais ela sempre deu a maior assistência; e pelo seu primeiro filho,
pois ela acreditava que ele não era feliz.
“Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Mas essa gente aí, hein?
Com'é que faz?”