terça-feira, 5 de outubro de 2021

Gravidade

Entre a autocompaixão e o flagelo

Noventa graus

Não existe ponto de equilíbrio no cair

marcado pelo vértice,

meu corpo pêndulo

tomba e derrama água

salgada com sangue.


Vai, balança! 

Deixa pesar na volta.

Vai, esfola! 

Deixa rasgar a pele.

Vai, levanta! 

Desapareça. 

domingo, 11 de julho de 2021

Cartum

 

Os olhos não estavam em lugar nenhum

Das narinas, o ar

Saiu curto e apressado.

Entregou a raiva com um beijo.

Foi para mim

mas não era por mim.

Ele não gostava de gostar.

 

As ruas continuaram secas

Os pássaros tristes

Naquele inverno

Nem um pouco de chuva caiu

Para lamentar a miséria

Daquele sorriso em pedaços 

De papelão.


quinta-feira, 24 de junho de 2021

"Despejo na Favela"

 

De volta ao quarto, a recomendação do médico foi para que a cercássemos das coisas de que gostava. Assim, vários CDs, das músicas que costumava ouvir em casa, foram levados para o hospital.

Chopin e Bach eram os que eu mais colocava pois ela gostava muito de música erudita, mas um do Edson Cordeiro, com canções variadas, também se fez muito presente naqueles dias. Deste álbum, sabia que as preferidas eram  Ombra Mai Fu - Lascia ch'Io Pianga (Handel) e Ave Maria (Vicente Paiva e Jaime Redondo), mas como eu geralmente deixava os CDs rodarem inteiros,  o samba Despejo na Favela ganhou um sentido único, tornando-se uma espécie de oração de despedida para mim.

O samba de Adoniran na versão de Edson Cordeiro é acompanhado por um tambor que lembra uma batida lenta de coração ou um cortejo fúnebre. Já o verso “é uma ordem superior” não me deixava esquecer que nada podíamos contra sua doença:  

É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior
Ô, meu senhor
É uma ordem superior”

Meu mundo estava desmoronando e a música dizia: “Dentro de dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão”. Era mesmo isso: estávamos fora de casa, em uma cidade que não era referência para nós, vivendo em um hospital situado à Av. da Saudade e talvez não tivéssemos ali, juntas, mais do que dez dias restantes.

A canção continuava e agora tentava tranquilizá-la de que eu sobreviveria:

“Pra mim não tem problema
Em qualquer canto eu me arrumo
De qualquer jeito me ajeito

Depois, o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena
Que cabe no bolso de trás”

 Eu sobreviveria porque não havia outro destino. Quando tudo aquilo tivesse terminado minha vida não faria mais diferença. 

A canção, então, chegava em sua última estrofe, nós nos entreolhávamos – ou não – e o pesar já não era por mim mas pelos seus irmãos, aos quais ela sempre deu a maior assistência; e pelo seu primeiro filho, pois ela acreditava que ele não era feliz.

“Mas essa gente aí, hein?
Como é que faz?
Mas essa gente aí, hein?
Com'é que faz?”