quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Comentário

O que faltava para eu entender a arte e a ciência era a morte.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Morcegos

Falando sério: há animal mais absurdo que morcego? É mamífero, voa, dorme de cabeça para baixo, tem patas, vive no escuro… É um ser da noite e dos buracos, que ainda pode se alimentar de puro sangue quente, dependendo da espécie. – Sob certo aspecto, tem ares de mariposa malígna.
Nem coloridos eles são! São cinzentos, de um preto empoeirado, gasto – são medonhos!
Deus, definitivamente, não estava de bom humor quando inventou o morcego. Devia estar triste, cansado, espirrou, então, algo nonsense no ar.
Observe um vôo de morcego. Eles não voam como pássaros, parecem pesados insetos. Conseguem voar rápido, lento, baixo, alto, em círculos, com mergulhos, mudar de direção velozmente…São afoitos e solitários… mesmo vivendo em bandos… um coletivo de vazios desesperados.
Acho que há pessoas que quando morrem tornam-se morcegos: os invejosos, os mesquinhos, os covardes e egoístas. – E acho que os sádicos e violentos tornam-se morcegos bebedores de sangue.
repararam no som que produzem? Kikihnkrinhknrhkrihnhiknhri….Até isso é pavoroso: fofocam, praguejam, lamentam alienados.
Uma vez, um deles se chocou com o meu rosto enquanto voava arrependido, e em seguida aterrissou desastrosamente no chão. Ele se arrastava com aquele corpinho mole e peludo, aquelas asinhas largadas e sôfregas que tentavam levá-lo novamente para a segurança de alguma escuridão (morcegos não acoplam as asas, tal como os pássaros, nas laterais da barriga, exceto de ponta-cabeça; quando estão no chão, parecem gelatina estragada, não conseguem ficar de pé). É uma cena lamentável, penosa; fico compadecida quando vejo um morcego concretizar toda a tristeza de sua existência ao se expor, tragicamente, no solo. – Inocentes pecadores esses animais que têm medo e vergonha de cair.
Mas ainda não falei da face deles. Sim, eles têm uma face: monstruosa. São cegos, mas possuem minúsculos globos oculares, nariz, boca e orelhas. A feição de um morcego é a de um covarde criminoso capturado, de um grito ensurdecedor cristalizado, de um choro milenar – que começou quando o primeiro traidor apareceu na Terra. – São seres ressentidos, carentes.
Sei que os morcegos não enxergam porque não querem. – Eles não querem ver. Fugiram para a escuridão para não lembrar que sofrem. E nas cavernas, nos forros das casas velhas, nas grutas úmidas, nas construções abandonadas, sempre lá está o sofrimento em forma de gota presa no teto.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Morcego

Deixa eu contar. Hoje entrou um morcego aqui em casa. Junto às ratazanas e camundongos de esgoto, este é o outro animal que me libera um medo estranho. Eu realmente não gosto de morcegos – mas compreenda: não é por isso que eu queira mal a estes pobres animaizinhos; eu só não os desejo perto de mim, ao mesmo tempo que eu no mesmo espaço .
Mas, então, o bicho entrou pelas minhas costas silenciosamente. De repente vi um vulto áereo e me virei: ele acabava de mergulhar até poucos centímetros do chão e quase tocava meus pés neste momento. Era dia e eu não me lembrava dos morcegos – por conta da hora, suponho; devia ser quase onze da manhã –, sendo assim, minha mente me informou que a massa voadora era uma mariposa. Mas como a mariposa estava voando rápido demais e não se viam lantejoulas ou cetim azul sobre suas asas, o morcego apareceu, em segundos, e a mariposa foi destruída. Ele, com toda a sua fealdade, agora voava desorientado pelo ar de minha sala de substantivos vivos.
Deixei-o lá e saí correndo para outro cômodo. Tranquei a porta como se o morcego pudesse desejar abrí-la a ponta-pés. – Afinal, por que ele viria à minha casa senão para me atacar? Talvez estivesse muito bravo comigo. E quem sabe porque não descobriu antes que eu não permitiria que ele fosse mariposa?!
Esperei, esperei, esperei, numa mistura de pavor e frêmito; duas vezes abri a porta para ver se ele tinha desisitido de me perseguir e escapado por umas das inúmeras saídas que havia na sala. Não, ele continuava lá, exibindo toda sua capacidade de vôo enquanto me ameaçava com rasantes na direção da porta. Foi quando tive uma idéia: iria espioná-lo de outro lugar. Saí do cômodo onde estava pela janela e alcancei a sala do morcego pela porta da frente da casa. Era uma missão arriscada, pois ele, com toda a sua fúria, poderia prever meu plano e me esperar, para um ataque certeiro, exatamente nesta outra abertura.
Cheguei com cuidado e entrei, preparada para uma fuga imediata, caso ele ainda estivesse ali. Caminhava pausadamente, a respiração curta e lenta, os olhos atentos ao menor sinal de movimento escuro – ele poderia estar escondido somente esperando o momento do bote.
A sala estava muda e fresca, como se somente um sonho tivesse passado por ali. O cachorro continuava no mesmo lugar, no mesmo tapete há uns dois metros da mesa onde eu estivera lendo antes da chegada da massa voadora. Perguntei, então, a este substantivo vivo se o indesejado visitante tinha partido. Ele não entendeu mas pôs-se a rir.
sentia, pois, meu corpo funcionando novamente: braços e pernas retornando do suspense, olhos repousando em suas conchinhas, respiração em volumosas ondas e um leve sorriso, que surgiu para arrematar a história.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Poeminhas

Real é o sertão:

O nada
amplo
mudo
verde
ocre

Quente e iluminado
Onde mato canta vento e insetos compõem silêncio.

...

O poema é a única companhia de um homem só
que observa do parapeito
do último andar de um prédio
a movimentação silenciosa da cidade
de brinquedo…

Lá embaixo

E as nuvens desbotadas e gastas – velhas tias a tomar sopa
depois do banho

Lá em cima.

...

Estou velha
Já tenho o pai morto.

Uma morte próxima
dobra o passado

O sofrimento conta mais anos.

Quando o tempo é hoje, ontem e amanhã?

A morte é agora sempre.
Pois o que diferencia o estar de olhos abertos e ter a pele aquecida do meu corpo apodrecendo sob a terra? Um coração pulsando? Mas o que é isto senão apenas o limite entre um movimento e uma pausa?

Instruções para o treinamento do salto.

A única coisa que faz sentido na hora da morte é a vida. E a vida, na hora da morte, é somente a beleza da história de quem vai morrer; a beleza, ou seja, a arte que fez consigo quem vai partir.
É somente nessa hora que damos conta da completa inutilidade da vida, da anti-função, da vida como pura e simples beleza: arte. Por isso penso que o melhor ator para a morte é aquele que se dedica a apurar os sentidos, e não costuma gastar tempo com os protocolos e a ração de papel: ele canta, cuida dos amigos, faz deliciosos bolos de festa, colhe jabuticabas, assisti passarinhos, dança com crianças, não desperdiça ou desdenha gestos e palavras, se interessa por trabalhadores, gosta de novidades, faz balões, nada com golfinhos e ariranhas, brinca de fazer carícias, usa a cabeça para inventar novos tons para sua aquarela e agradece todo dia pela fantástica experiência de poder pintar a vida a bordo de uma nau encarnada. Um minuto antes de morrer, este homem rirá então, feliz, sabendo que se divertiu - e que as crianças terão uma bela surpresa quando encontrarem os docinhos coloridos que deixou escondido pelos cantos da casa. Ele sabe que farão uma festa em seguida.
Todo o mais que não foi sentimento, afeto, sonho e magia ficará; e saibam: sem nenhum propósito nessa hora.