quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Ismael

Muito prazer, meu nome é Ismael...e eu não sei o que quero.

Isso deve ter acontecido aos poucos, pude perceber a mudança..., mas custei a aceitar o que ela anunciava.
Uma pessoa de quem eu gostava morreu, outra a substituiu – mas por quem não tenho tanto apreço.
Esta tem necessidades comuns, é capaz de sobreviver em grandes cidades, olha assustada para os conhecidos, acha que tudo está diferente e pior: sua história é mais longa, seu desconforto mais grave, seu não pertencimento: a todos os lugares; sua memória, cruel, seus passos, vingativos. O mundo a comeu, não a matou.
Esta outra pessoa que assumiu o lugar da morta por enquanto pensa que não tem sentido a vontade porque toda vontade leva à premeditação de uma morte, e que o verdadeiro desejo é o resgate da vida que se perdeu: quanto mais se deseja mais o verdadeiro desejo é fortalecido, o inatingível, aquele impossível de alcançar com vontade.
Eu, Ismael, sou um desconhecido. Passo os dias sentado, sozinho, numa sala vazia. Ninguém sabe da minha existência por isso não recebo visitas. Minha atividade é saber do que se passa – e eu sei. Tenho opiniões, mas elas são inúteis.
O meu papel? Viver alocado nas almas de pobres jovens em gestação a testemunhar seu envelhecimento. Em geral, não gosto de presenciar esta ocorrência inevitável, mas não tenho escolha, sou como uma lagarta de fruta podre: só posso existir neste mundo.
Cada um envelhece de uma forma. Já vi casos onde aconteceu no susto: de repente a menina lembrou de seus setenta anos e sentiu-se cansada pelo tempo que ainda teria que viver. Seu coração afrouxou diante de sua imagem gasta. Outras vezes, é pelos filhos, quando o futuro é transferido para eles. É a morte anunciada pelo nascimento. – São os casos que me dão mais sono e, infelizmente, os mais comuns.
Há ainda os que envelhecem nas pancadas, aqueles que já nascem velhos porque têm o destino traçado, os que pegam poeira porque se perderam no caminho, aqueles que vão lentamente, deixando o corpo velho aparecer e a sociedade cumprir sua coerção; e, por último, aqueles de que gosto: os que não envelhecem mas metamorfoseiam-se.
Estes são os melhores porque surpreendem. – Até me levanto da cadeira para falar deles. São divertidos e inesperados. Mesmo que o tempo aja, lá estão os sapinhos alados, como costumo chamar, a inventar um novo corpo, uma nova vida; histórias e alegria. Não existe o processo para eles, a evolução: tudo é criação no agora. Simplesmente vivos como insetos que não sentem o fim.
Atualmente, habito num tipo que envelhece nas pancadas. – Este também é interessante porque depende das tragédias – e não há monotonia no trágico.
O tipo boxeador, como nomeio o velho por pancadas, costuma fornecer bastante substrato sensorial para a minha sala, pois sua envelhescência vem carregada de incredulidades e conflitos existenciais. Para cada porrada que a vida lhe dá, ele vive um período de desconforto e tensão temporal que me faz passar de jovem a velho em questão de segundos – viajo no tempo com ele. O boxeador envelhece com poucos anos mas com muita memória. Em geral, morre lúcido e sabiamente resignado.

...

Confesso que sou um tanto entediado, mesmo quando envolvido por sapinhos ou boxeadores. Afinal, tudo é o tempo e a minha espera contemplativa. Poderia discorrer ainda – se é que interessa – sobre o tipo de envelhecimento gradual e os empoeirados, mas fica para outro encontro. Agora é a vida que segue.

Um comentário:

  1. ...é vida que segue... é fruta dourando o sol.
    Li-te-ra=tu-ra deliciosa e profunda que,faz mergulhar em si.

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